sábado, 13 de outubro de 2007

Desgraça pouca é bobagem

Conviver consigo mesma – e mais ninguém – era a grande dificuldade dela e eis que a vida lhe proporcionaria exatamente a oportunidade de vencer sua grande fraqueza. Caminhos que o destino lhe traçara ao longo de anos lhe levara a viver com o marido em uma cidade longe dos pais e dos sogros. Com a vinda dos filhos, sentia-se menos só, embora o trabalho fosse dobrado, mas o grande momento de sua batalha íntima estava por chegar: o marido viajaria para o exterior a trabalho por vários meses. Preparou seu espírito que, apesar de tudo, era guerreiro e decidiu que aquele tempo sozinha havia de lhe proporcionar bons momentos em companhia de si mesma. Teria acreditado nisso, não fosse pelo primeiro dia em que passou só com os filhos, domingo, dia seguinte da despedida dolorosa.
Tudo começou com uma intensa dor de cabeça, desde o dia anterior, graças ao período pré-menstrual que coincidira com o evento. Mas, pensou, ao raiar do dia, estaria pronta pra outra. Ledo engano: percebeu que sua cefaléia persistia antes mesmo do sol aparecer, quando acordou com o barulho que sua filha de dois anos e meio estava fazendo ao morder e rasgar o livro que emprestara na biblioteca. Resolveu dar a mamadeira da manhã logo, antes que ela comesse o livro todo. Quem sabe assim também ela não voltasse a dormir mais um pouquinho... Mal pisou no chão e deu de cara com seu filho mais velho, três anos e meio, olhos brilhantes de quem está full energy. A dormidinha ficaria para depois do almoço, resignou-se.
Foi para a cozinha fazer as mamadeiras enquanto planeja aquele domingo triste, não queria almoçar sozinha. Pensou em sair com as crianças para o clube, seria uma ótima opção para que eles gastassem bastante energia e ela não se visse a única adulta da face da Terra. Abriu a janela da cozinha para admirar o céu e estranhou o quanto estava demorando para amanhecer. Quando a tempestade desabou, entendeu porque o sol não dera as caras e, assim como ele, também ninguém colocaria os pés pra fora de casa naquele dia.
Já que era pra ficar, pensou, melhor tornar produtiva a estadia: tirou a máquina de costura que ganhara da mãe do armário e resolvera transformar uma velha calça jeans em corsário. Vida renovada, calça renovada. Por que não? Despachou as crianças para brincar na sala e entreteve-se com a costura que, felizmente, ficou ótima, mesmo com as duzentas e trinta e sete vezes que teve que parar para separar os anjinhos que se engalfinhavam na sala. A chuva seguia torrencial e a dor de cabeça também. A gritaria das crianças também. Finalmente chegara onze horas, hora do almoço. Dar o papá e despachar as crianças para o sono da tarde, esse era o plano. Uma ótima oportunidade para tomar mais uma dose de analgésico e deitar também, na esperança de que a segunda metade do dia fosse mais positiva. Pelo menos sem chuva e, nessa altura do campeonato, almoçar sozinha seria uma benção. Plano perfeito, não fosse pela birra que a pequena resolvera fazer para almoçar: talvez sentisse falta da figura paterna ou sabe-se Deus lá o quê, mas o fato era que de jogar comida pra todo lado, roubar a carne do irmão, ficar gritando e batendo o pé, a mocinha foi parar de castigo no berço. Resultado: um ótimo estimulante do sistema nervoso central, ou seja, insônia. Tanto para mãe, quanto para filha, que foi só a mãe virar as costas para sair do berço e acordar o irmão, fazendo ambos do quarto um perfeito parque de diversão, com direito a pula-pula no colchão e mar de bolinhas pelo quarto todo. Dada a gritaria, diria alguém de fora que havia também uma montanha russa no quarto. Decidiu que não ia mesmo conseguir dormir e, embora ainda fosse uma da tarde, péssimo horário para ligar na casa dos outros, talvez encontrasse um casal amigo para visitar naquele dia em que os parquinhos da cidade estavam encharcados. Pegou o telefone e constatou o problema da calha pesada pela chuva: interrompera sua linha telefônica cujo fio passava embaixo. Estava mudo. Ela ficou muda também. As crianças não. Pensou em voltar para a cama e deixar que o mundo acabasse em chuva e criança se matando na sala, mas achou melhor vencer o desafio, sairiam de qualquer maneira, mesmo que fosse para pegar um filme na locadora. Afinal, faziam isso toda semana e as crianças nunca deram trabalho, escolhiam elas mesmas o filme e entregavam para a atendente que, encantada, soltava sempre um “que gracinha”. Mas não nesse domingo de chuva, sem telefone, sem pai, sem dormir depois do almoço e tendo acordado às 6 da manhã. Em quinze minutos, a pequena abrira um pacote de Chips sem permissão, mexera em cinco prateleiras de DVD ao mesmo tempo e o maior mostrara-se um verdadeiro campeão velocista em potencial, driblando os consumidores do local. Os nervos da mãe estava quase para estourar quando resolveu pegar a pequena pelo braço e sussurrar no seu ouvido o que lhe aconteceria ao chegar em casa se não parasse com a indisciplina, ao que ela respondeu em alto em bom tom para todos escutarem, se jogando pelo chão e chorando:
- Não, mamãe, eu não quero apanhar!!!
Três e meia da tarde. Definitivamente, aquele seria um dia longo. Voltou pra casa e teve sossego, enfim, até as cinco, enquanto o filminho do Mickey trazia o milagre do silêncio. A chuva agora era miúda, o telefone continuava mudo, a dor de cabeça passara. O dia estava melhorando com a chegada da noite. Colocou os filhos para dormir às oito e meia, como de costume. Graças a Deus. Seu primeiro dia sozinha estava acabando, o segundo, ou melhor, a segunda-feira, seria bem melhor. Resolveu assistir o filme de luta que locara, sua paixão, o kung fu. Divertiu-se, finalmente, por uma hora e meia. Começou a pensar que o dia não tinha sido tão ruim assim, pelo menos fecharia com chave de ouro, não fosse pelo fato de entrar na cozinha para fazer a última mamadeira dos pimpolhos e se deparar com ... não, não podia ser apenas uma para desafiá-la, tinha que ser TRÊS BARATAS! Justo no primeiro dia em que seu marido estava fora, chovera, não puderam passear, estava de TPM, o telefone ficara mudo e as crianças com o diabo no coro, tinha que aparecer TRÊS BARATAS JUNTAS? Isso era sacanagem demais! Com fogo no olho, irada, pegou um chinelo em cada mão e posicionou-se no centro da cozinha, pernas na base do gato, braços abertos como se segurasse uma espada em cada mão (como Tom Cruise em “O último samurai”), avançou para cima dos insetos nojentos tirando de dentro de si um uivo desesperado provocado pela adrenalina da hora do ataque. Matara apenas uma, as outras duas fugiram, tão assustadas quanto ela.
Com o coração aos saltos, o sono veio tarde, sem sonhos. Finalmente a segunda-feira chegara.